Renascer das cinzas


Não é recente o fenómeno de desertificação do nordeste algarvio, mas nos últimos anos a situação tem vindo a piorar drasticamente.
Depois do surto de emigração para França, Suiça, Luxemburgo e Alemanha, principalmente na década de 60 do século passado, o regresso à terra nunca foi relevante e os filhos dos que cá ficaram, assim que puderam deslocaram-se para o litoral do Algarve, onde as oportunidade de emprego são maiores e melhor sucedidas. A serra foi assim tornando-se num imenso território despovoado, onde os principais aglomerados urbanos foram perdendo população, até restarem apenas, nalguns casos, menos de meia dúzia de pessoas. Naturalmente que o tempo não se detém e o envelhecimento dos resistentes foi factor para o não rejuvenescimento e consequentemente o seu desaparecimento.
No seio deste serra imensa que separa o Algarve do Alentejo e que não deixa a sua fama por mãos alheias no léxico do povo, tão bem identificado pelas “passas” que são necessárias passar para transpor a dificuldade de chegar ao litoral algarvio, está a bela aldeia de Cachopo.
Como muitas outras terras por este Portugal fora, Cachopo também é uma igreja no meio e o resto à volta. Mas o resto é cada vez mais resto, pese embora o esforço feito nos últimos anos.
Lá se construiu um lar para os idosos – o que há mais em toda a freguesia – arranjaram-se as ruas, criou-se um museu, modernizou-se o saneamento básico, arranjou-se a igreja, loteou-se um terreno com as devidas infra-estruturas para que casais novos sentissem o apelo de uma vida bucólica e tranquila para se reproduzirem, construiu-se habitação social e mais um conjunto de outros equipamentos e melhorias no sentido de contrariar o movimento descendente da presença humana naquela zona da serra. Mas se esta missão já de si não é fácil, a calamidade dos incêndios ainda a tornou mais complicada.
Hoje a realidade é que a estrada 397 em direcção a Cachopo, a mais utilizada para lá chegar, está em más condições e não é fácil arranjá-la, os filhos da terra continuam a deslocar-se para o litoral e só lá voltam aos fins de semana para ver a família que resiste teimosamente até ao último suspiro de vida, não se ouvem choros de bebés e poucos são os risos de crianças nas casas, as que existem são cada vez em menor número, a escola fechou, arranjar uma consulta médica é um filme de terror e tudo se torna mais complicado a cada dia que passa.
Porque uma desgraça nunca chega sozinha, o destino, o acaso ou o raio que o parta de uma qualquer mão criminosa de alguém que nunca devia ter nascido, espalhou o terror do fogo pelos serros e encostas daquele território esquecido pelos homens mas lembrado pelos desgraçados desta vida que só se sentem bem a matar o sonho e a semear a angústia junto de tão nobre gente.
E esse é o derradeiro momento. A hora da capitulação. Onde o caos se junta eivado de força e violência em redor das casas das pessoas e dos seus haveres conquistados no sangue, no suor e nas lágrimas de uma vida difícil feita de sol a sol, sem o conforto e as mordomias do litoral que alguns não sabem nem nunca saberão o que significam. Gente que comeu o pão que o diabo amassou e que só há pouco tempo conheceu o brilho da luz eléctrica ou a frescura da água a correr de uma torneira. Coisas tão banais nas nossas casas que até ficamos com a ideia que são direitos de tal forma adquiridos que deviam ser oferecidos. Não sabemos o que custa viver sem isso.
No fim fica a imagem da paisagem tenebrosa pintada a cinzento e negro, concorrendo com aquela que nos foi mostrada em fotografias dos homens que conquistaram a Lua. Só que nesta paisagem não há um Mar da Tranquilidade. Aqui apenas restam árvores carbonizadas, pedras negras, cinzas e escombros. Tranquilidade só se for a que resulta do abandono. O silêncio é o som da ausência daqueles que partiram para nunca mais voltar. Porque alguém se encarregou de lhes complicar a vida, mudar-lhes o rumo do destino ou do acaso e negar-lhes um futuro na terra que os viu nascer, crescer e dar vida a outras vidas.
O interior do Algarve não vive, sobrevive. Mas hoje não é fácil prever por quanto tempo.
Resta-nos acreditar que renasceremos das cinzas, senão os Homens pelo menos a Mãe Natureza.

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