O meu Caminho de Santiago - Segunda etapa: Ourense - Lalín
Quando acordei na manhã do dia da segunda etapa a Caminho de
Santiago estava com a sensação de ter sido atropelado por uma manada de touros
nas ruas de Pamplona. Não passei bem a noite e percebi que o dia não ia ser
fácil por falta de descanso.
Porque a etapa era mais curta que a anterior parti para o
Caminho mais tarde. Eram quase 10 horas da manhã. Obviamente que a esta hora já
devia estar com quilómetros nas pernas, até porque ao longo do dia cheguei à
conclusão que apesar de mais curta que a anterior etapa, esta era claramente a
mais exigente do ponto de vista físico e anímico. Foram 65 quilómetros bem mais
duros que os 100 do dia anterior.
Para complicar um pouco mais a situação tomei um
pequeno-almoço impróprio para quem vai pedalar. Poucos hidratos de carbono.
Porquê? Porque não estava bem. Simplesmente. Coisas do organismo. Tem dias.
Fiz-me ao Caminho tendo como referência a monumental Ponte
Vella de Ourense a qual permitiu-me atravessar o rio Minho. Seguramente por ela
passaram muitos peregrinos ao longo dos séculos, numa ponte com muita história.
Em seguida tinha uma pequena subida com um nome incentivador – Santiago – a
qual serviu para começar a aquecer os músculos das pernas. O problema principal
estava mesmo em encontrar uma posição para me sentar no selim. Aparentemente
não existia sem que implicasse alguma dor. Com o tempo fui-me aconchegando e
para aliviar, sprintava. A minha surpresa em relação às dores era grande.
Trazia quilómetros suficientes para elas não surgirem com aquela intensidade.
Os músculos das pernas estavam bem. As zonas de fricção estavam uma lástima. Se
já não tinha dúvidas em relação ao assunto, naquele dia confirmei: a qualidade
do equipamento é muito importante, principalmente os calções.
Cruzada a estrada N-525 tinha diante de mim o Caminho Real.
Não li o suficiente sobre este “obstáculo” por isso comecei a fazê-lo devagar
com prudência. Ainda bem. Tratava-se de uma parede com cinco quilómetros de
extensão e com pendentes vaiáveis. Não quero exagerar mas algumas estão
seguramente nos 20%. Fui subindo com sacrifício lembrando que Cristo também
sofreu na subida ao Calvário. Era a única metáfora que me ocorria. Exagero da
minha parte, é certo. Mas cada um carrega a sua cruz e a de Cristo foi a mais
pesada de todas.
As pessoas que se cruzavam comigo iam dando os bons dias em
galego. Um suplemento de força muito bem recebido. Exactamente como na Serra de
Tavira onde toda a gente diz bom dia ou boa tarde a quem passa. Ali também é
assim. Os peregrinos fazem parte do seu dia-a-dia durante todo o ano.
Foi no Caminho Real que encontrei os primeiros peregrinos a
pé. E que peregrinos. Um grupo de mais de 20 jovens espanhóis que ao verem-me
com um equipamentos preto, verde e branco começaram a gritar pelo Bétis.
Estavam parados a descansar junto a Ermida de São Marcos, local onde se pode
contemplar uma espectacular vista panorâmica sobre Ourense. Nesse local estava
mais uma família de peregrinos com quem conversei por breves instantes.
Conforme tinha referido no relato da primeira etapa, no dia
anterior não me cruzei com peregrinos. Um só que fosse. Não quer dizer que não
os houvesse mas eu não os vi. Nesta etapa como na seguinte encontrei muitos.
Não os contei mas seguramente foram mais de uma centena nesses dois dias,
principalmente no último. Fiquei depois a perceber que os peregrinos que fazem
o Caminho a pé, muitos deles escolhem como ponto de partida locais que estejam
a 100 quilómetros de Santiago de Compostela para poderem cumprir o mínimo
exigido. Ou seja, o mesmo raciocínio que eu fiz quando optei por Chaves, sendo
certo que no meu caso tinha outras razões para iniciar da cidade flaviense.
Essa família de um casal e dois filhos tinha acabado de começar o Caminho em
Ourense e sobretudo os pais já não estavam com bom aspecto. Talvez tenham
subestimado o desafio o qual queriam cumprir em seis dias. Oxalá tenham chegado
bem à Plaza de Obradoiro.
Depois de descansar, fotografar e conviver fiz-me ao Caminho
para completar o resto da subida que me faltava. Finalizado o Caminho Real
entrei numa zona de características rurais sem grande histórias para contar até
encontrar mais uma magnífica ponte medieval do século XIII, a qual permitia
cruzar o rio Barbantiño. Desci da bicicleta para fotografar a ponte e como
havia muito pouca água desci mesmo até ao leito do rio.
Nas imediações dessa ponte junto a um aglomerado de casas em
ruína encontrei mais um grupo de peregrinos. Quatro raparigas que caminhavam em
silêncio e que só deram pela minha presença já muito perto delas o que as
assustou. Nesta etapa e na seguinte voltou a acontecer-me o mesmo. Os
peregrinos que seguiam a pé não se apercebiam da minha presença e nalguns casos
ocupavam toda a largura do caminho. Para os avisar que estava ali travava e
pedia licença para passar. Em muitas ocasiões vi os seus rostos uma vez
assustados outras vezes de espanto. Depois de muitas situações destas conclui
que pese embora algumas excepções o sacrifício de uma jornada a pé desta
dimensão, envolvida em momentos de reflexão, oração e muito cansaço, levam a
que o peregrino se abstraia do que está à sua volta e só se aperceba que há
mais alguém quando isso se trona absolutamente inevitável.
Mais à frente teria outra surpresa. O meu destino era Cea,
terra de pão, de fornos comunitários e de padarias, mas antes de lá chegar tive
de passar em Viduendo. No centro da pequena aldeia havia uma pequena igreja,
igual a tantas outros de estilo românico, e ao seu lado um conjunto de imagens
nas quais pontificava a Nossa Senhora de Fátima e os três pastorinhos. Foi
mesmo um momento de agradável surpresa ainda mais quando a seu lado esvoaçava
ao vento a bandeira de Portugal. Costuma-se dizer que é no estrangeiro que
valorizamos mais os símbolos e as referências nacionais. Portugal é mesmo ali
ao lado da Galiza, mas Viduendo é seguramente um lugar quase perdido no mapa e
uma bandeira portuguesa ainda é uma bandeira portuguesa para quem gosta de ser
português.
Chegado a Cea à sua Plaza Mayor sentei-me no primeiro banco
que encontrei. Era o alívio das pernas e de outras partes do corpo que exigiam
uns minutos de tranquilidade. Só que o meu organismo já vinha dando sinais de
falta de “combustível” devido ao fraco desayuno
uma vez que o jantar não constituiu reserva energética suficiente, antes sim um
inimaginável repasto desfrutando os prazeres da carne bovina. Muita proteína
mas poucos hidratos. O tão famoso chuletón.
A família que me acompanhava já estava alertada para o
estado de sítio em que se encontrava o meu défice energético e por isso
providenciou o que me fazia falta naquele momento: um bocadillo XXL de jamon e queso, que a Sónia preparou com aquele
infinito carinho que lhe é próprio, uns bolos secos e fruta. Tendo em conta a
espiritualidade do Caminho posso dizer que comi como um abade…
Refeito e com os bidons da bicicleta cheios com água e
isotónico voltei à minha tarefa. Em Cea há a possibilidade de optar por um de
dois traçados do Caminho. A divisão é feita junto ao estádio de futebol, numa
zona alta daquele pueblo. Para a
direita no sentido Norte os peregrinos seguem em direcção a Oseira onde se
encontra um magnífico mosteiro do século XII, porém quase totalmente
reconstruído no século XVIII. Para a esquerda vão na direcção de Piñor por um
caminho igualmente oficial. Eu fui por Oseira. É o caminho mais longo, mais
duro mas mais bonito e com a possibilidade de passar junto ao Mosteiro.
Até chegar a Oseira tive muitas vezes de ir a pé porque
estava num troço muito antigo com predominância de enormes pedras onde era
praticamente impossível pedalar mais de cinco a dez metros de cada vez.
Entretanto as dores começaram a aumentar e o que tinha comido ainda não estava
a fazer efeito no “motor”. Para complicar ainda mais um pouco eram perto das 13
horas e o calor fazia-se sentir. Cheguei a Oseira com sentimentos
contraditórios. Por um lado a satisfação de ver a monumentalidade de um
mosteiro cisterciense perdido no meio do nada mas já com algum cansaço, dores e
a certeza que a dificuldade maior, superior à saída de Ourense, estava a
chegar. Tinha feito apenas metade da etapa mas a dureza do Caminho estava bem
presente.
Em Oseira a família já estava à minha espera. Ponderámos a
hipótese de visitar o Mosteiro mas decidi não fazê-lo uma vez que perderia mais
de uma hora. No albergue de peregrinos procurámos pelo responsável com o
objectivo de obter o carimbo na credencial mas ele não estava naquele momento.
Foi então que decidi prosseguir o meu Caminho. A família ficou com a credencial
para confirmar a minha passagem pelo local e eu segui viagem. Antes de o fazer
e porque estava já a entrar na fase da agonia pedi um comprimido. Era
inevitável. Há coisas que só acontecem quando menos esperamos e as dores
costumam ser uma delas. Tenho muitos quilómetros feitos nos últimos anos mas
nunca tinha sentido tantas dores a pedalar como naquele dia. Parecia mesmo uma
provação. O Apóstolo queria pôr-me à prova. E pôs.
Saí de Oseira em direcção a um monte que confrontava o
Mosteiro a norte. Sabia que tinha uma subida dura pela frente, percebi logo
isso nos primeiros 200 metros, o que não contava é que fosse um troço de
escalada. É praticamente impossível pedalar naqueles dois quilómetros a subir
com uma pendente média de 8%. O calor apertava e a bicicleta umas vezes era
empurrada e noutras vinha literalmente às minhas costas. Imagino que para um
peregrino a pé esta subida seja muito dura com uma mochila pesada. Garanto que
o desconforto de carregar uma bicicleta é superior. Não foi mau. Foi muito mau.
A meio da subida quando não tinha ideia da posição em que me
encontrava, eis que surge o asfalto. Durante dois segundos respirei de alívio.
Sim, o Caminho continuava do outro lado da estrada com a mesma dureza no piso e
pior inclinação. E assim foi até encontrar novamente uma estrada, essa sim a
marcar o ponto final naquela subida terrível. Obviamente não estava sozinho com
a bicicleta naquela subida. As dores fizeram questão de nos acompanhar e só um
pouco mais tarde baixaram as armas e permitiram que pedalasse com um pouco mais
de conforto.
O Mosteiro de Oseira ficou para trás mas a ele voltarei em
breve para visitar e conhecer.
Uns metros mais à frente tinha um novo desafio. Depois de
passar junto à povoação de Vilarello reparei que estava fora da rota.
Achei estranho porque não tinha visto o marco do Caminho. Voltei atrás e onde o
GPS indicava a mudança de direcção mas só via mato e vegetação espessa. Cheguei mais
perto e lá estava o marco. Significava que ia entrar num single-track completamente fechado
pela vegetação. A designação até está generosa. Aquilo era mais um half single-track. Para complicar o
aperto a vegetação era composta por ramificações espinhosas. Logo tinha de
pedalar mais devagar possível para não ficar arranhado e ainda mais doído. Ou
seja, estou a referir-me a meia dúzia de quilómetros a partir de Oseira os
quais levei praticamente uma hora a percorrer, grande parte a pé. Aquilo já não
era BTT. Era castigo.
Ultrapassados estes troços inqualificáveis segui o meu
Caminho por uma zona tipicamente rural composta por pequenas hortas onde os
habitantes produzem muito daquilo que consomem. Entretanto a água estava a
terminar porque o calor era significativo, mas ao contrário do que acontece na
Serra de Tavira onde não existe com frequência pontos de água, no interior da
Galiza, pelo menos naquela zona, qualquer pequeno pueblo tem um fontanário de água potável e muito fresca. Foi
como uma dádiva dos céus que achei uma dessas fontes, mais precisamente em
Carbellediña. Refresquei-me, enchi os bidons e segui em frente em direcção a A Gouxa,
Bidueiros e San Martiño onde iria reencontrar a estrada N-525 que me levaria
até Dozon onde a família me esperava para reabastecer.
Estava já relativamente perto de Lalin onde iria pernoitar e
por isso pedi à família que seguisse para aquela cidade. Eu iria cumprir o
caminho pelo seu traçado conforme estava estabelecido. Entretanto verifiquei
que me encontrava a uma altimetria bastante considerável, acima dos 800 metros.
Significava que até ali o percurso tinha sido predominantemente de muita subida
e pouca descida.
Dali em diante foram mais uns 20 quilómetros de sobe e desce
até Lalin mas sem grandes dificuldades, comparadas com as que já tinha
deixado para trás. A cidade de Lalin não fica propriamente no Caminho. É
necessário desviar um pouco. Mas no planeamento prévio que fiz das etapas deu-me
jeito. Ainda ponderei incluir mais 20 quilómetros até Silleda mas ainda bem que
não o fiz. É que uma coisa são 20 quilómetros de asfalto a direito e outra são
em BTT por caminhos rurais que não conhecemos. No dia seguinte percebi que
tinha feito a melhor opção.
E assim cheguei a Lalín com a bicicleta muito suja de bosta
de vaca que me obrigou a passar pela lavagem de uma estação de serviço. Não o
referi anteriormente mas antes de Dozon faz-se uma dezena de quilómetros numa
zona rural de forte produção pecuária em que os caminhos estão bem “contaminados”
daquilo que o gado bovino inevitavelmente deixa por lá. Para quem faz o Caminho
a pé, vejam com atenção onde os colocam, não vão ter uma desagradável surpresa.
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