O meu Caminho de Santiago - Última etapa: Lalin - Santiago de Compostela
A terceira e
derradeira etapa do meu Caminho começou em Lalin. Na verdade o traçado oficial
não passa naquela cidade mas sim um pouco mais a sul, perto da Estrada N-525.
Por questões de logística optei por finalizar a etapa do dia anterior em Lalin
em vez de fazer mais 15 quilómetros até Silleda. Foi uma boa opção.
A distância até Santiago de Compostela eram aproximadamente
57 quilómetros com 1100 metros de acumulado de subida. Ou seja, menos exigente
que as etapas anteriores mas com uma dificuldade que contarei mais à frente.
O caminho entre Lalin e Silleda é marcado pela travessia da
ponte de Taboada sobre o rio Deza, datada do século X. Nas suas imediações o
caminho é feito de empedrado que exige grande perícia para quem segue em cima
de uma bicicleta. Junto à ponte encontrei um grupo de escuteiros espanhóis muito
animados e acompanhados por um frade que me deram um muito sonoro «Buen
Camino».
Uns poucos quilómetros mais à frente parei junto à igreja deSantiago de Taboada onde recolhi o carimbo bem como para visitar aquele templo.
No seu interior fui surpreendido com mais um símbolo da religiosidade
portuguesa. Num dos altares laterais lá estava, mais uma vez, a imagem da Nossa
Senhora de Fátima acompanhada dos pastorinhos. Perguntei à pessoa que estava a
vigiar a igreja o porquê daquela imagem, uma vez que no dia anterior tinha
encontrado uma semelhante em Viduendo. Respondeu-me que naquela zona da Galiza
havia uma grande devoção à Nossa Senhora e que Fátima era uma referência para
os católicos galegos. A imagem não era muito antiga e tinha sido oferecida por
um devoto.
Segui o meu caminho em direcção a Silleda onde tinha a
família à minha espera junto à igreja de Santa Eulália. Chegado ao local apenas
abasteci os bidons com água fresca porque aquele era o dia mais quente da
viagem e o calor já se fazia sentir a meio da manhã.
Os quilómetros seguintes foram quase sempre a rolar sem
grandes dificuldades. Encontrar peregrinos no Caminho era cada vez mais
frequente. Para quem seguia a pé aqueles seriam os últimos dois dias uma vez
que é normal as etapas diárias serem de sensivelmente 20 quilómetros.
Depois de passar no pueblo de Bandeira foi sempre a rolar
com pequenas subidas e descidas até às imediações de Puente Ulla onde, ai sim,
comecei a encontrar grupos maiores de peregrinos que por serem tantos ocupavam
toda a largura do caminho ou da estrada. As brincadeiras de pedir boleia e as
palavras de incentivo e de desejo de boa viagem sucediam-se. O ambiente entre
estes peregrinos era bem diferente dos do dia anterior, talvez pela maior
proximidade ao destino e também por se tratar de grupos numerosos. Para mim era
o derradeiro dia. Mas para eles muito provavelmente seria o penúltimo ou
antepenúltimo. Em todo o caso era a fase final de uma longa jornada para quem
faz o caminho a pé.
Logo à saída da ponte sobre o rio Ulla, junto à Igreja de
Santa Madalena encontra-se o local para recolher o carimbo. Acabei por parar
também para abastecer porque o “motor” estava a pedir combustível. Nada que um
magnífico bocadillo de jamon não resolve-se.
O fim estava próximo. Por isso pedi á família para rumar em
direcção a Santiago de Compostela e esperar por mim na Plaza de Obradoiro. Não
havia motivo para parar antes. Eu estava bem e tinha água e energia suficiente
para chegar a Santiago de Compostela.
Assim foi. Eles seguiram confortavelmente de carro e eu fui
enfrentar uma subida de vários quilómetros com o sol a fritar o corpo. A espaços olhava para a paisagem de modo a abstrair-me da subida
que se complicava a cada minuto devido ao calor e ao cansaço acumulado. A saída de Ulla é dura mas muito bonita em paisagens. No topo da subida o prémio foi um fontanário de água fresquinha perto
de mais uma pequena capela de estilo românico. Fiquei depois a saber que era
mais um local de romaria e de referência para quem faz a Via da Prata.
Tratava-se da Capela de Santiaguiño em San Pedro de Vilanova, Outeiro. Poucos
metros mais à frente fica um albergue de peregrinos com muito bom aspecto.
Segui a minha viagem em direcção a Santiago de Compostela e
tinha pela frente os últimos 20 quilómetros os quais foram percorridos por
trilhos mas também por estradas num sobe e desce sem grande
dificuldade. Entretanto o calor continuava a castigar já em plena hora do
almoço e a ansiedade por ver a zona urbana de Santiago começava a crescer a
cada minuto.
Já muito perto de Santiago voltaram a surgir umas subidas
mais acentuadas e o silêncio dos campos que me acompanhou durante muito tempo
foi substituído pelo ruído de carros. Estava já junto à auto-estrada e um pouco
mais à frente passei sob uma das suas pontes. Aí tive a primeira visão da
proximidade de Santiago. Ao meu lado direito estavam os magníficos edifícios da
Cidade da Cultura da Galicia. Foi também nessa altura que encontrei o mais
jovem peregrino a pé. Não devia ter mais de 16 anos e caminhava sozinho. Fui
uns metros ao seu lado e meti conversa. Era uma madrileno que vinha de Ourense
e caminhava há seis dias. Estava muito perto de chegar ao seu destino. Tal como
eu que vinha de mais longe mas apenas com metade dos dias. Desejei-lhe sorte e
continuei em frente.
Já nas imediações de Santiago cheguei à Rua de Sar, uma
descida em empedrado onde avistei finalmente as torres da Catedral. A viagem
estava a chegar ao fim e as dificuldades estavam ultrapassadas. Pensava eu.
A Via da Prata entra na cidade de Santiago de Compostela
através de uma rua não muito larga com trânsito nos dois sentidos e uma subida
muito íngreme onde a presença de um ciclista com elevados níveis de cansaço e
ansiedade só serve para atrapalhar ainda mais quem por ali passa. Ainda tentei
desviar-me para cima do passeio mas foi um esforço inglório. O passeio é para
os peões e eu tive que esperar por uma nesga de tréguas no trânsito para vencer
o desnível da rua.
Este é mesmo o último obstáculo físico. Depois só resta a
ansiedade de percorrer as ruas que dão acesso à Plaza de Obradoiro que em
Agosto estão pejadas de gente espalhadas pelas esplanadas, pelas lojas ou
simplesmente a circular. O ambiente era fantástico. Peregrinos a chegar, uns de
mochilas às costas e outros de alforges nas bicicletas. Mais uma vez senti-me
um privilegiado na medida em que não tive de suportar o peso da carga inerente
à viagem.
Uns metros mais à frente surge então a Plaza de Obradoiro e
toda a imponência da Catedral voltada de
frente para o também imponente edifício do Ayuntamiento. A Sónia estava à minha
espera bem no meio da Plaza pronta para me receber. Quando parei olhei para a
Catedral. Que sensação fantástica. Todo o objectivo que é superado, seja com
maior ou menos dificuldade, é sempre um momento de alegria. O calor era
bastante. À minha volta havia festa. Eram os vários peregrinos que chegavam
também ao seu destino alguns deles também com família e amigos à espera. Era
uma celebração colectiva ainda que cada um à sua maneira. Para o meu tio
Fernando que me acompanhou nesta aventura e sem ele teria sido tudo muito mais
difícil, comemorar a chegada pressupunha abrir um garrafa da cava. Assim foi. OApóstolo já deve estar acostumado a estes festejos pouco ortodoxos como tal
julgo que não cometemos qualquer pecado que não tenha perdão.
Tentei cumprir as formalidades inerentes à chegada,
nomeadamente abraçar o Apóstolo mas a fila era enorme. Nem consegui perceber
onde terminava. Contentei-me com uns breves minutos de silêncio e reflexão sentado
num dos bancos da Catedral de frente para o altar-mor. Findo esse tempo fui
tratar da minha Compostela (o documento que atesta ter percorrido o Caminho
dentro das regras que estão definidas, mediante a apresentação da credencial
com os respectivos carimbos).
Mais uma fila mas desta vez, nem sei bem porquê, um
voluntário dos serviços do Caminho de Santiago retirou-me da fila e mandou-me
avançar para um balcão onde teria acesso à Compostela. Fiquei com a ideia que
os ciclo-peregrinos gozam do benefício de prioridade na fila para a recolha do
diploma. Não posso dizer que seja pela maior dificuldade de fazer o Caminho de
bicicleta em relação a pé porque na verdade ficou-me essa dúvida. Vi tantos
rostos de cansaço e agonia ao longo do Caminho que não sou capaz de afirmar
qual a modalidade mais penosa. De bicicleta não sendo propriamente um passeio
na medida em que obriga a alguma preparação física, também não se pode dizer
que é extremamente exigente.
Já com a Compostela na mão senti o doce sabor da superação
de um desafio. Afinal de contas é esse o nosso dia-a-dia: superar desafios.
Normalmente não nos apercebemos mas a verdade é que viver é um desafio
constante onde se superam obstáculos e se ultrapassam momentos difíceis sempre
na expectativa de vivermos um momento de alegria que a superação de um
objectivo nos possa trazer. Mas a este tenho de juntar a extraordinária
colaboração da Sónia e do meu tio Fernando. Certamente chegaria na mesma a
Santiago de Compostela mas a dificuldade tinha sido muito maior e a alegria não
era partilhada. Por isso ainda bem que fomos juntos.
As motivações de cada peregrino quando decide fazer o
Caminho de Santiago são diversas e cada qual merece a sua condição de reserva.
Mas julgo que não estarei errado se disser que tem pelo menos um ponto que é
comum a todos. Vencer um obstáculo. Superar um desafio. Está na condição
humana. As nossas vitórias são feitas com base nessas premissas. É isso que nos
faz levantar todos os dias. E todos nós, mesmo inadvertidamente, temos
objectivos na vida. Este era um que tinha guardado. Está feito. Tratarei de
alcançar outros, porém com uma certeza: voltarei a Santiago de Compostela.
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