Um sábado nas estradas do céu


Para mim o dia 13 de Outubro de 2012 começou nas margens do Mondego às seis da manhã com o despertador a mandar levantar para encarar o desafio físico mais exigente que alguma vez enfrentei. Tinha à minha espera a prova Granfondo Skyroad na Lousã, recriação de uma etapa de montanha na modalidade de ciclismo.

Desafiado por amigos e colegas e sem ter a certeza de conseguir superar os 3500 metros de acumulado de subida numa extensão de 150 quilómetros, decidi enfrentar esta empreitada apesar das muitas dúvidas que tinha se conseguiria chegar ao fim ou se cairia na tentação de me desviar para o percurso do Mediofondo, o qual era mais curto e menos exigente.

Eram oito da manhã quando parti no meio de uma pelotão de 800 ciclistas de ambos os sexos, todos brindados com uma espécie de frio glaciar que rapidamente nos gelou os músculos, as articulações e até a alma. O sol estava ainda escondido atrás da montanha com mais de 1000 metros de altitude que sobranceia a bonita vila da Lousã.

Para mim os primeiros 20 quilómetros foram dramáticos. Gelado em cada milímetro quadrado do corpo, não conseguia encontrar um ritmo e uma cadência que me permitisse andar com confiança. Tentei encontrar um grupo de ciclistas no qual me sentisse confortável, mas parecia que eu era o único desconfortável no meio dos 800. Assim comecei a ficar cada vez mais para trás e a mentalizar-me que a minha inscrição neste evento desportivo tinha sido um atrevimento descarado.

A única boa notícia que tive na primeira subida do dia à Serra do Açor, muito perto dos 1000 metros de altitude foi o sempre desejado abastecimento. No hotel onde fiquei hospedado, saí sem poder tomar um pequeno almoço decente, devido à hora, e o pouco que comi antes da partida para meter algum açúcar no organismo, rapidamente se esfumou nos primeiros quilómetros a subir. Uma prova como esta exigia uma boa dose de hidratos de carbono às 6 da manhã. Infelizmente não foi possível.

Com o estômago mais reconfortado fiz-me à estrada ao som de bombons e concertinas que alegravam a zona de abastecimento e disfarçavam o muito frio que se fazia sentir. Poucos minutos depois senti o resultado daquilo que a organização me tinha disponibilizado para comer. Finalmente consegui começar a andar, com outro ritmo e cadência.

Não demorei muito para apanhar uns ciclistas que seguiam na minha frente com os quais fiz umas dezenas de quilómetros serra acima. O vento muito forte, gelado por sinal, só me trazia à cabeça o conforto e a temperatura do vale dos lençóis.

O GPS não mentia e a proximidade dos 1000 metros de altitude estava a escassa distância. A paisagem era de cortar a respiração, ainda mais para mim que não conhecia aquela zona de Portugal.

Superada a primeira grande dificuldade, no alto da Serra do Açor, finalmente umas descidas para respirar e dar descanso às pernas e ao coração. Pela frente tinha o segundo grande desafio: a subida da barragem de Santa Luzia a qual tinha uma distância curta, menos de dois quilómetros, mas um declive médio de 11,5% com troços de rampa muito inclinados, obrigando a trabalhos forçados. Quando muito perto do início da subida olhei para cima e vi o pórtico onde tinha de passar, fiquei com o sangue congelado nas veias. A muito custo e aos zigue-zagues lá fui subindo para disfarçar a dificuldade que sentia em levar a bicicleta para cima.

Passado este obstáculo e com uns 60 quilómetros já cumpridos estava na altura de descer até à Pampilhosa da Serra. Naquela bonita terra perdida no meio das montanhas, estavam à nossa espera duas coisas: o segundo abastecimento e uns troços de subida com 22% de inclinação feitos dentro do chamado casco urbano da vila. Foram minutos dramáticos pelo menos para mim. O pulsómetro mostrava o meu batimento cardíaco nas 180 batidas por minuto. No fim desta rampa quebra-pernas começava uma outra subida menos penosa mas nem por isso menos castigadora.

Com o organismo compensado com o reforço do abastecimento e mais umas coisas que os ciclistas levam no bolso para se alimentarem, precisei apenas de voltar ao meu ritmo, lento por sinal. Para meu grande espanto comecei a passar por vários ciclistas que estavam com, ainda mais dificuldades do que eu na subida ao alto da serra. Iniciei então um longo período em que estive quase sempre sozinho naquela imensidão de território a perder de vista. Olhava para trás e não via ninguém e para a frente o resultado era o mesmo. De vez em quando lá passava um carro. Mas ciclistas nem vê-los. Fui descendo a grande velocidade numa estrada só para mim com um piso fantástico, contrastando com a miséria de vias que nós temos no Algarve. Não há comparação, infelizmente.

Passado algum tempo finalmente companhia momentânea. Uns quilómetros depois, lá estava ela: a subida para Picha. Já com 100 quilómetros nas pernas não há como não sorrir ao ver a placa dessa localidade perdida na Beira. Um soldado da GNR colocado no respectivo cruzamento, autorizou-me a subir para a Picha e eu como sou obediente à autoridade lá fui. No centro da Picha estava mais um abastecimento. A boa disposição reinava entre os locais, tanto no rosto deles como delas. Deve ser uma emoção viver na Picha.

Não havia tempo a perder. Castanheira de Pêra era a próxima paragem e ainda tinha muito para subir. Assim fiz, uma vez mais sozinho e abandonado. Os da frente não esperavam por mim e pelos que vinham atrás eu também não esperava. Amor com amor se paga.

Parei, no verdadeiro sentido da palavra, no abastecimento em Castanheira de Pêra para comer. Ao contrário dos anteriores, encostei a bicicleta e fui à procura de conforto para o estômago. Já vinha em débito e ainda havia uma subida a quase 1000 metros de altitude antes de descer para a Lousã. O cansaço era enorme. Estava com 120 quilómetros nas pernas e sabia que os últimos quilómetros seriam os da ansiedade a tocar no vermelho. Saí daquela localidade acompanhado de um outro ciclista, com o qual fiz toda a escalada à Serra da Lousã. Foi para mim a pior subida de todas, pese embora não ser muito inclinada, apenas 3,8% de declive médio. Mas a ansiedade misturada com o cansaço, as dores musculares e nas articulações, mais as ameaças de câimbras que felizmente não se vieram a verificar, pareciam puxar-me para baixo quando a obrigação era seguir para cima. Já não havia ritmo nem cadência. Era apenas uma subida ao calvário. As placas que estavam colocadas na berma da estrada dando conta da distância para o cume e a inclinação média a cada quilómetro, aumentavam ainda mais a minha ansiedade. Aos poucos fui subindo por entre a vegetação espessa apenas interrompida pelas zonas ardidas nos incêndios de Verão.

Quando vi a placa com a marreta partida nem queria acreditar. A subida tinha terminado e daquele ponto para a frente não haviam mais subidas nem sequer zonas planas. Era descer vertiginosamente em direcção à Lousã. Foram 18 quilómetros de pura adrenalina onde os dedos das mãos agarrados às manetes dos travões começavam também a doer. Estava difícil encontrar uma parte do corpo que não estivesse ressentida daquele esforço. A paisagem mais uma vez era deslumbrante, pontuada com pequenas povoações onde as casas são feitas de xisto e conferem aos nossos olhos a satisfação de confirmar a beleza da especificidade das regiões do nosso país.

Entretanto a descida parecia não ter fim, mas teve. Já na vila da Lousã, uma curva apertada para a direita mostrava-me finalmente a meta. O desafio estava superado e à minha espera estavam o Carlos, o Nuno e o Vitor, os três colegas do Clube GBES que também se prontificaram a superar este enorme desafio. Olhei para o cronómetro e vi o meu tempo. Oito horas quase certas, nas quais estavam incluídas as minhas paragens para comer nos reabastecimentos.

Este relato para aqueles que estão habituados a este tipo de desafios, nomeadamente aqueles que fazem do ciclismo a sua profissão, pode até parecer anedótico. Mas para mim o desafio foi épico. Da mesma maneira que um dia tomei coragem para descer a 30 metros de profundidade no mar, experiência que até essa altura sempre achei ser incapaz de realizar, também esta foi bastante marcante. Já tinha feito longas distâncias muito perto dos 150 quilómetros, mas nunca com este acumulado de subida. Daí o desafio

Para uma pessoa que esteja habituada a andar de bicicleta e treine com regularidade, esta quilometragem não assusta. Na semana do Granfondo tinha feito em dois dias seguidos quase 240 quilómetros, com 3500 metros de acumulado de subida. Mas esta empreitada de uma vez só foi mesmo uma experiência única e inolvidável.

É para repetir, sem dúvida alguma.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A ESCOLA ABANDONADA DE CRIANDE E MORGADE

Os manifestantes anti-Sócrates

O meu Caminho de Santiago – Preparação e Motivação.