O Zico
O Zico foi um dos meus grandes heróis na infância e
adolescência. Foi, à época, o melhor jogador da selecção brasileira de
futebol e salvo erro dos primeiros a encetar a aventura europeia de
jogar no então muito desejado e milionário Calcio italiano.
Ontem,
hoje e seguramente nos próximos dias, o nome Zico é visto nas redes
sociais como o cão que atacou uma criança em Beja, causando-lhe a morte.
Este texto é, portanto, um desabafo da alma, depois de ver e ler coisas que me deixaram sem fôlego.
Li
por aí a organização de petições a pedir que o Zico não fosse abatido, como determina a
lei, a procurarem um advogado para defender o cão (uma coisa algo folclórica) e até pessoas que se
disponibilizam para adoptar o animal, tratá-lo e dar-lhe uma segunda
oportunidade de voltar a matar. Não me admira se nestes dias ou no dia em que o Zico for abatido, alguém se lembre de organizar uma vigília à porta do canil municipal de Beja ou no limite em frente ao Parlamento, com direito a pedradas e tudo.
Nos
sítios onde li coisas sobre a indignação canina, não vi uma única palavra escrita a lamentar a
morte de uma pobre criança de 18 meses. Uma só que fosse. Não vi tudo, é certo, mas vi alguma coisa.
De repente
salvar o Zico é mais importante que respeitar a memória de um ser humano
que sofreu um ataque que o levou à morte. Diz-se até que o cão não sabe
o que faz quando ataca a criança mas pelos vistos a criança sabe o
perigo que corre quando fica sozinha com um animal potencialmente
perigoso.
Mais do que isso. Li no
facebook um comentário de uma senhora estimável que desconheço a sua
identidade e a circunstância de ser ou não também mãe, que escreveu: -
Deus queira que este menino ainda não tenha sido abatido…
O
menino a que a senhora se refere é o Zico, não é a criança que morreu.
Isto para mim, desculpem-me a franqueza, é o estado puro do talibanismo a
que chegou a defesa cega dos direitos dos animais. Não há aqui nada de
razoável nem de tolerante. É fundamentalismo puro, ainda por cima com a
evocação de Deus pelo meio para soar mais dramático.
Aliás,
isto para mim não é defesa dos direitos dos animais, é a mais
absoluta subversação da condição humana e do valor da vida. Não tenho
outra forma de ver o assunto.
Obviamente
o Zico vai ser abatido através de um processo civilizado de eutanásia, sem
sofrimento, ao contrário do que aconteceu à criança que chegou ainda com
vida ao hospital, mas gravemente ferida. Porquê? Porque enquanto vivermos num Estado de Direito as leis são para cumprir. E é assim que tem de ser para protecção das pessoas, nomeadamente as mais indefesas como foi o caso.
Naturalmente
que as responsabilidades não ficam apuradas e resolvidas com o abate do
animal. É preciso que o processo não fique pela falta de provas em
relação à negligência grosseira de deixar uma criança indefesa junto de
um cão potencialmente perigoso. Alguém tem de ser preso. Mas eu
desconfio que não é isso que vai acontecer.
Reclamo assim aqui a minha indignação perante tudo isto.
Há
umas semanas atrás um individuo que maltratou de forma consecutiva uma
criança, foi presente a tribunal e o juiz sentenciou-lhe uma pena de
prisão suspensa o que levou ao arguido a sorrir no banco dos reús
perante tão confortável decisão. Ele quase matou uma criança indefesa e
o juíz não o prendeu. E com o dono do Zico se calhar vai acontecer o
mesmo, porque nalguma cabeça da Justiça deste país estará presente ou
que o cão não sabia o que fazia e já foi abatido ou que o arguido, sendo
provavelmente primário, tem direito à segunda oportunidade de voltar a
negligenciar a segurança e a guarda do seu animal de estimação.
Isto
não seria tão grave se não se visse tanta gente preocupada com o
abate do Zico e ao mesmo tempo a silenciar e até branquear a morte de um ser humano. E vejo isto em que menos esperava, porque algumas
dessas pessoas sabem com certeza o que é uma criança de 18 meses, mais que não sejam
as suas que têm ou já tiveram essa idade.
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