O Jorge Botelho é meu herdeiro e eu não sabia


Em Outubro de 2009, eu e mais três ilustres cidadãos tavirenses, terminámos o nosso mandato na Câmara Municipal de Tavira. Eu e outra cidadã continuámos como autarcas para um novo mandato, mas agora sem pelouros atribuídos. Os restantes foram fazer outras coisas.
Terminavam então 12 anos de gestão social-democrata em Tavira. E terminava porque um dos cidadãos, o que liderava a equipa, partiu para outro desafio. Se tivesse ficado, hoje seria ainda, de certeza absoluta, presidente do município de Tavira. Quem tem dúvidas disso é porque possui uma tão grande reserva mental em relação à pessoa que não consegue ver o óbvio.
Entretanto o testemunho foi passado aos novos autarcas que compõem hoje o executivo.
Nestes últimos dias fiquei a saber por um jornal, que eu e os meus outros colegas do anterior executivo municipal fizemos uma grande maldade ao actual presidente da Câmara de Tavira. Segundo ele, deixámos-lhe uma herança de muitos milhões de euros em dívidas, bem como um conjunto de maus projectos que teve o trabalho de mandar anular.
Quando me apercebi desta circunstância, fiquei para morrer. Nunca pensei fazer tanto mal a alguém e muito menos ao Jorge Botelho que conheço há muitos anos e com quem mantenho uma saudável e muito cordial relação institucional a qual sem exagero posso chamar de amizade.
Nessa noite não dormi a pensar que, pese embora todas as obras que neste mandato foram concluídas ou estão em curso, as quais vinham já em ritmo muito acelerado de concretização do anterior, umas com concursos de empreitada lançados e adjudicados e outras muito perto disso, não tivessem sido suficientes para o satisfazer, nem façam parte do pecúlio que diz ter herdado. Pior fiquei quando me lembrei de como a cidade e o concelho eram em 1998 quando o PSD chegou à Câmara e como estão agora. Tanto trabalho não chegou para constituir motivo de ponderação no deve e haver da herança.
Por mais que tentasse fechar os olhos para dormir, vinha-me à lembrança, dilacerando-me a consciência e o sono, os muitos quilómetros de estradas feitas onde haviam apenas caminhos de cabras, as escolas todas elas recuperadas, algumas feitas de raiz e uma outra preparada para ser construída, uma biblioteca moderna, equipamentos desportivos por toda a parte, o centro histórico e muito do seu património recuperado o qual estava em estado miseravelmente decrépito ao abandono, os hotéis e pousadas que não sendo obras municipais têm muito trabalho e empenho dos eleitos locais, uma rede de saneamento básico requalificada ao fim de décadas de utilização, centros de dia feitos nas diversas freguesias, dezenas e dezenas de fogos de habitação social para quem não podia ir aos bancos contratar crédito, transportes escolares para todos os alunos que moravam longe das escolas e não tinham meios para se transportar, milhões de euros gastos em equipamentos municipais para servir os munícipes, jardins, parques infantis, de estacionamento e de exposições, pontes e pontões. E tantas outras coisas que foram feitas um pouco por todo o lado. Tudo isso não foi suficiente para satisfazer a anuência do meu presidente de Câmara. Para ele apenas recebeu dívidas e projectos maus para anular.
E mesmo a autarquia em si que em 1998 não tinha sequer meia dúzia de computadores e os que haviam trabalhavam a palha, quando em 2009 todos os funcionários com funções técnicas ou administrativas tinham atribuído um equipamento informático. Ou mesmo a qualidade técnica dos serviços municipais. Em 1998 não havia uma mão cheia de licenciados na autarquia. Em 2009 eram quase uma centena. Já para não falar dos edifícios entretanto reconvertidos para o funcionamento dos serviços, todos eles modernizados e informatizados, ligados em fibra óptica para que ninguém ficasse à espera do papel que a senhora contínua levava em passo de caracol de secretária em secretária. Nada disso pesou na balança da justiça da satisfação exigente do meu actual presidente da Câmara.
Mas a minha insónia de repente transformou-se em pesadelo, quando me lembrei que em 1998, no meio do quase nada que tinha transitado da gestão PS para a do PSD, pontificava um arquitecto corrupto, condenado em tribunal por esse crime, o qual fazia umas coisas estranhas com alguns munícipes na secção de obras particulares da autarquia. Esta prática tinha uma característica curiosa. Era conhecida de toda a gente, menos de quem mandava na câmara. É que às vezes estamos tão absorvidos com o que se passa num concelho grande como o de Tavira que acabamos por não reparar no que acontece nas nossas barbas. Diria até, em jeito de analogia com as declarações do meu presidente da Câmara, que se ele recebeu dívidas do PSD, o PSD recebeu entre muito pouca coisa, um funcionário que não interessava nem ao menino Jesus.
Pessoalmente acho que o meu presidente Botelho teve mais sorte. É que as dívidas devidamente contratadas não são crime. Já uma prática ilícita identificada de corrupção é daquelas coisas que não faz falta a ninguém de boa consciência que esteja na vida pública.
Não quero com isto dizer que os seus camaradas de então sejam culpados de alguma forma dessa situação – e ele muito menos - mas se o problema são as diferenças das heranças, acho que não precisa vir o Diabo para escolher qual a pior.
Sendo assim, na parte que me toca, peço desculpa ao presidente da Câmara de Tavira por termos deixado esta herança: um concelho de Tavira exponencialmente muito melhor do que aquele que em 1998 o PSD recebeu. Oxalá consiga fazer melhor para entregar a quem vier depois.

Nota: Este texto antes de ser tornado público foi dado conhecimento ao Presidente da Câmara Municipal de Tavira, Jorge Botelho.

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