Espiões da treta

Um dos pilares da democracia moderna é termos uma imprensa livre em que não exista delito de opinião e os jornalistas possam trabalhar, dentro das regras estabelecidas, com liberdade de acesso à informação e capacidade de investigação. Quando isso não acontece a qualidade da democracia definha, uma vez que as pessoas não têm acesso à verdade dos factos e não podem construir o cenário da realidade, ficando no ar a suspeita.
Quando técnicos do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, e digo técnicos porque em lado algum se chama espiões aos funcionários deste organismo, alegadamente obtêm informações ilegais de uma operadora de telemóveis para saber a quem é que um jornalista ligou ou mandou mensagens, estamos perante um reviver dos métodos da extinta PIDE que não olhando a meios violava a privacidade das pessoas, isto na base dos seus comportamentos mais civilizados, porque daqui para a frente e o céu era o limite e nalguns casos o destino de muitos que caíam nas suas mãos.
É portanto um tiro no edifício democrático português, ter um serviço do Estado a praticar actos que, salvo melhor opinião e respectiva justificação, estão à margem do que está legislado e regulamentado para o funcionamento das Secretas. Admito que quando está em causa a defesa nacional e a protecção dos cidadãos de actos criminosos ou terroristas, nem sempre os métodos tenham de ser os mais ortodoxos. Mas quando o que está em causa é travar ou condicionar o trabalho de um jornalista que tem em mãos a missão de perceber se este serviço funciona dentro da mais completa normalidade e não excede as suas competências em matéria de investigação, o dolo não pode passar em claro.
Tudo isto merece ser esclarecido e punido se for concluído que alguém extravasou as suas funções sem justificação, na medida em que investigar um jornalista que se sabe quem é não é a mesma coisa que desmantelar uma operação de crime organizado ou de terrorismo. São coisas totalmente diferentes.
Por fim não pode ficar esquecida a atitude da operadora telefónica, muito provavelmente de algum ou alguns dos seus funcionários, que passaram para fora da mesma e sem autorização, informações de alguém sem a sua autorização. É um sinal da mais completa devassa da privacidade de um cliente da empresa e mais concretamente de um cidadão que não tem de ser sujeito a este tipo de violação dos seus direitos mais básicos.
É factual que as chamadas que fazemos e as mensagens que mandamos dos nossos telemóveis deixam rasto, nomeadamente em relação aos seus destinatários. Quer-me parecer é que isso é daquelas coisas que, não indiciando a prática de um crime e não havendo um processo judicial ou de investigação em curso por suspeita claras de ilícito, não pode ser entregue a qualquer pessoa e para mim é qualquer pessoa um “espião” do SIED que extravasa as suas competências funcionais, a mando ou a propósito sabe-se lá do quê.
Admito que nem tudo fosse mau no Estado Novo. Mas a PIDE e os seus métodos eram com certeza. Por isso não me parece que seja bom para a democracia portuguesa que não é tão antiga como tudo isso, fazer uma regressão no sentido de permitir que os seus cidadãos sejam tão violentamente devassados na sua privacidade, como parece ter acontecido com o ex-jornalista do Público.

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